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segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

CHICA DA SILVA

 

PJ Rodrigues

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[CHICA DA SILVA]

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Foi uma escrava brasileira alforriada que ficou famosa pelo poder que exerceu no arraial do Tijuco, hoje a cidade mineira de Diamantina. Manteve uma relação de concubinato com o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira.

Francisca da Silva nasceu no Arraial do Tijuco, atual cidade de Diamantina, Minas Gerais, na época em que o Brasil tornou-se grande produtor de diamantes.

Filha do português, capitão das ordenanças, Antônio Caetano de Sá e da africana Maria da Costa, foi escrava de um proprietário de lavras, o sargento-mor Manoel Pires Sardinha, com quem teve um filho chamado Simão Pires Sardinha, alforriado pelo pai, recebeu seus bens em testamento.

Alforria e Luxo

Com 22 anos, Chica da Silva foi comprada pelo rico desembargador João Fernandes de Oliveira, contratador de diamantes, que chegou ao Arraial do Tijuco, em 1753.

Depois de alforriada, passou a viver com o contratador, mesmo sem matrimônio oficial. Chica da Silva passou a ser chamada oficialmente Francisca da Silva de Oliveira. O casal teve 13 filhos e todos receberam o sobrenome do pai e boa educação.

Chica da Silva, mulata, frívola, prepotente, impôs-se de tal forma, que o rico português atendia a todos os seus caprichos. O maior deles, como não conhecia o mar, pediu ao marido para construir um açude, onde lançou um navio com velas, mastros, igual às grandes embarcações.

Chica da Silva vivia em uma magnífica casa, construída nas encostas da serra de São Francisco, onde promovia bailes e representações.

Era dona de vários escravos que cuidavam das tarefas domésticas de sua casa. Só ia à Igreja ricamente vestida e coberta de joias, seguida por doze acompanhantes. Consta que muitas pessoas se curvavam à sua passagem e lhe beijavam as mãos.

Fim da União


João Fernandes de Oliveira foi acusado de contrabandear diamantes, chegou a ser preso e perdeu parte de seus bens. Mesmo assim, possuía uma das maiores fortunas do Império Português.

A união do casal que durava 15 anos, foi interrompida em 1770, quando João Fernandes retornou a Portugal, depois da morte de seu pai a fim de resolver questões de herança familiar, levando com ele os quatro filhos homens que teve com Chica da Silva. Lá, adquiriram educação superior e alcançaram cargos importantes na administração do reino.

Chica da Silva ficou no Brasil com as filhas e a posse das propriedades do marido, o que lhe permitiu continuar vivendo no luxo. Suas filhas estudaram prendas domésticas e música.

Mesmo sem viver com João Fernandes pelo resto de sua vida, Chica da Silva conseguiu distinção social e respeito na sociedade elitista de Minas Gerais, no século XVIII.

Chica da Silva convivia com a elite branca local. Em seu testamento, doou parte de seus bens às irmandades religiosas do Carmo e de São Francisco, que eram exclusivas de brancos, e às das Mercês, exclusivas dos mestiços e a do Rosário dos Pretos, que eram reservadas aos negros.

Chica da Silva faleceu em Serro Frio, Minas Gerais, no dia 15 de fevereiro de 1796. Foi sepultada na irmandade religiosa de São Francisco de Assis, exclusiva dos brancos.

Texto e imagem do faceBook.

quarta-feira, 19 de abril de 2023

 

 

O Barroco na América Portuguesa: Novos Olhares

Modelos iconográficos da deposição de Cristo e das Sibilas nas Minas Gerais do século XVIII: propaganda político-religiosa e persuasão na América Portuguesa

Maria Cláudia Almeida Orlando Magnani

Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Brasil

mariaclaudiamagnani@gmail.comhttps://orcid.org/0000-0003-0261-7023

As pinturas da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim em Diamantina, Minas Gerais, Brasil, trazem um tema intrigante e único na colônia portuguesa da América: quatro sibilas contornando o quadro da deposição da cruz. As profetisas estão representada sem meio corpo, em quadros entre colunas paraníncas figurando cariátides, e sobre cada quadro, há um medalhão seguro por um querubim trazendo os seus nomes: Délca, Líbica, Frígia eTiburtina. Setecentistas, as pinturas foram atribuídas a Silvestre de Almeida Lopes, pintor nascido na colônia e que teria aprendido o ofício com o bracarense José Soares de Araújo

1

.



1. MIRANDA, Selma Melo & SANTOS, Antônio Fernando Batista dos.

Artistas Pintores do Distrito Diamantino: revendo atribuições.

Comunicação apresentada ao Colóquio de História da ArteLuso-brasileira, Salvador, 1997.Fig. 1. Abóboda da Capela de Nosso Senhor do Bonfim em Diamantina. Fonte: Foto de Bernardo Magalhães, 2019.



Modelos iconográficos da deposição de Cristo e das Sibilas nas Minas Gerais do século XVIII- M. C. A. O. Magnani

Sobre o templo não foram identificados quaisquer documentos que nos pudessem informar sobre qual irmandade abrigava, quem seriam os irmãos, quando foi construído, quem seriam os responsáveis pelas pinturas, talhas, imaginária. A única menção ao templo encontrada no século XVIII está na documentação da irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, hoje no AEAD – Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina e citada por Machado Filho:

Os homens crioulos faziam parte da Irmandade de N. Senhora do Rosário dos Pretos. Dela, porém se desincorporaram e fizeram, esta Separação indeCorosamente Com palavras menos descentes dizendo ser esta hua irmde. De Negros“ ...Conseguiram, interinamente, para sua irmandade o altar do Senhor dos Passos na Capela do Senhor do Bonfim, onde, em 16 de janeiro de 1780,deram posse aos mesários, depois de estarem estabelecidos emSanto Antônio do Tijuco desde a data de 2 de settembro de 1772.

2

Por este documento pode-se apenas inferir que a capela já existia no ano de 1780, uma vez que recebia então, temporariamente, os “homens crioulos” expulsos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e que criaram a confraria de Nossa Senhora das Mercês. O quadro central com a deposição, contornado por quadratura, faz parte de uma totalidade na qual se misturam o tema sofisticado das sibilas, das figuras paraníncas e a técnica ilusionista da arquitetura fingida com a pintura quase naïf   do pintor colonial. Em Portugal como na colônia, a estrutura de falsa arquitetura não era realizada por um quadro escorçado, em perspectiva. O uso da perspectiva manteve aí uma função de narrativa historiada em contraposição ao espetáculo próprio da quadratura romana (como nas pinturas dos tetos feitas por...

2. MACHADO FILHO, Aires da Mata.

Arraial do Tijuco Cidade Diamantina 

. Belo Horizonte: LivrariaItatiaia; São Paulo: Edusp, 1980, p. 247

Maria Cláudia Almeida Orlando Magnani

Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Brasil

mariaclaudiamagnani@gmail.comhttps://orcid.org/0000-0003-0261-702


 

domingo, 9 de abril de 2023

D. JOÃO FELÍCIO DOS SANTOS - PRIMEIRO BISPO DE DIAMANTINA

 

Celebrando-se, este ano, o jubileu de ouro da Abolição da Escravidão no Brasil nos é

reivindicar para o primeiro bispo de Diamantina a honra de ter sido um dos mais entusiastas

dentre os abolicionistas mineiros. Mais justo colocar o busto do primeiro bispo de Diamantina numa praça tão especial que leva o seu nome e ao mesmo tempo por ter sido um grande humanista.

Espírito arguto no estudo das úlceras sociais do seu tempo e conhecedor esclarecido da

doutrina da Igreja Católica de que era digno Pastor neste longínquo rebanho diamantinense, D.

João Antônio dos Santos soube formar ideias justas e severas a respeito da escravidão dos

africanos no Brasil, junto com os seus irmãos Joaquim Felício dos Santos e Antônio Felício dos Santos e João Felício, fervorosos na questão da abolição e da república no Brasil.

Seu coração, sua ciência, sua piedade e seu patriotismo fizeram dele um resoluto

abolicionista.

                                    IMAGENS DA INTERNET - 

            Nos jornais periódicos da cidade, principalmente do órgão da Igreja, D. João cobrava dos seus compatriotas a luta pela liberdade dos escravos, que não era bem aceita por aqueles que possuíam e defendiam os seus interesses em manter a escravidão a qualquer custo.

Tendo-lhe D. Viçoso confiado, em 1845, a redação da Selecta Católica, deu á estampa

vários artigos contra a escravidão, o que lhe valeu as iras dos assinantes possuidores de

escravos. Devolveram o jornal, com o endereço a D. Viçoso.

“Recebido o pacote, - conta o Cônego Severiano, - mandou o Prelado chamar o Redator

a palácio e referiu-lhe o que se acabava de dar.

- Então? – Disse-lhe D. Viçoso.

- Neste caso, o remédio é muito fácil, - respondeu-lhe o interrogado. Eu me retiro da

Redação e V. Exmª. faça substituir por outro que não desagrade os assinantes.

O Prelado não esteve pelo alvitre, acrescentando que ambos eram da mesma opinião

sobre o magno assunto, e tanto assim que já havia publicado um escrito seu em prol da

liberdade que se devia dar aos cativos. Com toda a pressão em cima de D. João o primeiro bispo da nossa diocese não se intimidou, com sua simplicidade e inteligência, driblou os oposionistas e continuou a sua campanha contra a escravidão.

Entrados em acordo, continuou a escrever como dantes, no órgão oficial da Diocese, só

deixando o cargo, que tão bem havia desempenhado, quando teve de seguir para Roma”.

            D.João e seus irmãos Joaquim Felício dos Santos e Antônio Felício dos Santos eram contra a escravidão e defendiam abertamente o fim da monarquia e favores a República. Este fato conhecido pelo Imperador D. Pedro II, que não gostava nada dos ataques de Joaquim Felício dos Santos que fazia nos jornais e uma longa campanha para o fim do regime da monarquia. Suas críticas ferrenhas criava um enorme embate entre os poderes políticos da cidade que eram os conservadores a favor da manutenção da monarquia e da escravidão, e os liberais que eram contra a escravidão e o fim da monarquia. D. João o bispo de Diamantina, era a favor da república e com isso criava um grande impasse entre a Igreja local e o Imperador. Para não ser preso como aconteceu com os bispos do nordeste  por serem contrário a monarquia, D. João foi enviado para Roma para fazer o seu doutorado e de lá foi para a França onde concluiu vários cursos importantes na sua carreira.

Voltando ao Brasil, quer como padre, quer, depois, como bispo, D. João continuou

defendendo as mesmas ideias a respeito da escravatura e o fim da monarquia juntamente com os seus irmãos.

Em 1870, com a valiosa colaboração da Câmara Municipal, chefiou, em Diamantina, a

organização de uma Associação pia, cujo fim era promover e acelerar a emancipação dos

escravos: a Irmandade de Nossa Senhora das Mercês.

No começo de julho de 1870, dirigiu aos possuidores de escravos a seguinte circular, em

nome da Câmara Municipal:

“Ilmo.Snr.

A Ilustríssima Câmara Municipal desta cidade se dirige a todos os possuidores de

escravos neste município, convidando-os para uma grande reunião nesta cidade, afim de tratar

se da libertação dos cativos nela existentes.

Tomando eu parte na referida manifestação de humanidade e justiça, que será ao mesmo

tempo uma distinção e uma glória para o nosso município, rogo a V. S., em nome da nossa

Santa Religião, que aceite o convite que lhe é feito, e que, ainda com sacrifício, não deixe de nela

comparecer no dia marcado.

Deus nosso Senhor o abençoe e toda a sua família.

Sou, com estima,

De V.S.

Amigo e servo muito obrigado,

João, Bispo de Diamantina”.

No dia 11 de julho de 1870, houve a reunião, presidida pelo ínclito Diocesano e com a

presença, entre outros cidadãos, dos Srs. Josefino Vieira Machado, João Felício dos Santos,

Dr. João Raimundo Mourão e Comentador José Ferreira de Andrade Brant. Ficou fundada a

benemérita e patriótica “Pia Sociedade de Nossa Senhora das Mercês”.

O Art Iº. Dos seus estatutos dizia: “Fica instituída nesta cidade da Diamantina, com o fim

de auxiliar a emancipação do elemento servil, uma pia sociedade, sob os auspícios de Nossa

Senhora das Mercês”.

Em outros artigos dos mesmos estatutos vem mais especificada a finalidade da

Associação. Vejamo-los:

“Art. 3º - Serão aceitos donativos, ainda que sejam para alforria determinada, e neste caso

não poderão ser aplicados a outro fim.

Art. 6º - São considerados sócios honorários ou benfeitores quantos,... libertarem em

nome dela, escravos de qualquer valor, ou prestarem serviços relevantes á causa da

emancipação.

Art. 7º - Todos os sócios tem o dever de proteger as causas de liberdade, quando justas.”

No capítulo III, art. 10º, D. João Antônio dos Santos é proclamado Presidente Perpétuo da

Sociedade.

Nas atribuições da Diretoria, estatue a letra d: “Alforriar escravos na proporção dos fundos

sociais disponíveis, conforme as regras dos artigos 25 e 26”.

Entre as atribuições dos Procuradores está (art. 20.; letra c) a de : “Inquirir com empenho

quais os escravos que, por sua conduta e outras circunstâncias, devam ser preferidos pelos os

benefícios da Sociedade.

Art. 25º. – Em regra, para a alforria dos escravos, deverão ser preferidas as mulheres aos

homens até a idade de 40 anos; as casadas ás solteiras; as que tiverem filhos vivos ás que não

os tiverem; os que forem sócios aos que não o forem. Em igualdade de condições, recorrer-se á

sorte.

Art. 26º - Poderão ser auxiliados os escravos que tenham parte do dinheiro necessário

para a sua alforria, ou cujos senhores façam abatimento no seu valor”.

Nos anexos aos Estatutos, são para notados;

“Art.Iº. – A Sociedade, cada ano e por meio de sorte, distribuirá prêmios de um conto de

réis pelos seus sócios escravos que anualmente houverem contribuído com a quantia de 20$000,

na razão de um prêmio por 50 dos sócios.

Art. 3º - Se a quantia saída por sorte não cobrir o preço da liberdade do escravo premiado,

a Sociedade o poderá inteirar com os fundos que tiver em caixa”.

O capítulo único da letra B dos anexos estatue:

Art. 1º - Desejando auxiliar os seus membros escravos por todos os modos possíveis, a

Sociedade por eles distribuirá pela sorte cada ano, prêmios de 200$000.

Art 2º - No fim do cinco anos, os mesmos terão o direito a um auxílio de 75$000; no fim de

dez, 180$000; no fim de vinte, 520$; no fim de 25 a 29, um conto de réis”.

Está-se vendo a eficiência com que a Sociedade se propunha promover e incentivar a

emancipação do elemento servil, tudo sob a orientação sábia de D. João.

O primeiro Bispo de Diamantina escreveu, em 28 de setembro de 1887, uma vibrante

Pastoral aos seus diocesanos, e nela se pronunciou francamente pela Abolição.

Nesse importantíssimo e patriótico documento, tendo de anunciar ás suas ovelhas as

festas do jubileu sacerdotal do papa Leão XIII, D. João recomendava, como a obra mais

significativa e oportuna, a libertação dos cativos e o amparo aos que já tivessem obtido a

liberdade.

Essa Pastoral do virtuoso Antiste repercutiu grandemente em todo o país.

Quando o projeto da Lei Aurea foi discutido no Senado, no dia 10 de maio de 1888, um

Senador abolicionista, em abono de seu voto, citou a Pastoral de D. João e lembrou a sua

proposta sobre um golpe de Estado.

Um membro da oposição exasperou-se com a citação e bradou que o Bispo de

Diamantina deveria ser “criminalmente responsabilizado pelo seu ato”.

Por aí se avalia o peso da opinião do prelado mineiro na importância pendência.

D. João, bispo de Diamantina, muitas vezes agasalhava os escravos, como também lhe

dava de comer e dinheiro para seguir viagem.

Entrado no ano de 1888, - narra o seu biografo Cônego Severiano de Campos Rocha, por

muitíssimas vezes ia pelas ruas da cidade, e batia á porta de todas as casas onde houvesse

possuidores de gente escrava, e aos mesmos pedia um grande favor, qual era o da liberdade

para aqueles que assim conservavam e gratuitamente o serviam.

Desse modo, conseguiu na Diocese umas 2.000 cartas de alforrias.

D. João e o 13 de maio, quando aqui chegou a notícia da libertação final de todos os

escravos do Brasil.

“No mesmo dia da sanção, por via telegráfica, foi a grata notícia transmitida para a Diamantina.

Estando D. João no Biribiri, lá recebeu a grata notícia da  extinção do elemento servil em nosso país, e logo mandou apressar o troli em que costumava viajar e pôs-se a caminho da cidade.

Entretanto, e sem perda de tempo, ia-se preparando uma festividade pública, um sinal do contentamento de que exultavam quantos haviam tomado parte na grande luta e, portanto, na vitória de foi ela coroada.

Enquanto isto se fazia, soube-se que D. João não tardaria chegar do Biribiri. Os

organizadores da festividade, seguidos de pessoas de todas as classes, se dirigiram para o alto

da cidade, e ao subirem a rua da Glória, avistaram o troli que conduzia o Prelado, descendo pela

mesma rua. Estugaram então o passo e ao enfrentarem o carro, fizeram parar os animais,

desatrelando-os, no intento de os substituir, o que não conseguiram, em obediência a D. João,

que com eles desce a pé atravessando a cidade até o passo episcopal.281

A festa cívica realizou-se ao cair da noite, na praça fronteira ao Grupo Escolar, e que

então o Paço da Municipalidade, e em cujo frontispício fartamente iluminado com lanternas de

várias cores, flutuava a bandeira nacional.

Junto ao alto paredão da Catedral construiu-se um luxuoso palanque reservado a pessoas

gradas, das quais a primeira era D. João, a quem, na hora previamente ajustada, uma numerosa

comissão composta de distintos abolicionistas, foi buscar ao palácio, acompanhando-os uma

banda de música do Corão, do palácio para a praça.

Uma vez no seu lugar de honra, em companhia de vários sacerdotes, executado o Hino

Nacional, discursaram sobre o assunto do dia o Dr. Álvaro da Matta Machado, Arthur Queiroga,

Dr. Francisco Rabelo, enaltecendo as peregrinas virtudes do Prelado e o muito que havia feito

pela libertação dos escravos.

A Estrela Polar, D. João Antônio dos Santos – um dos mais célebres abolicionistas mineiros pág,1, ano XXXVI, nº 20 , Dtna, 15 de maio de 1938.


 

 


sexta-feira, 14 de outubro de 2022

JOSÉ VIEIRA COUTO DE MAGALHÃES

Um Toque de Voyeurismo1 MÁRCIO COUTO HENRIQUE* RESUMO Por muito tempo, duvidou-se da possibilidade de se penetrar na história íntima dos brasileiros de séculos passados através da leitura de seus diários, tidos como inexistentes. Entretanto, pesquisas mais recentes têm demonstrado que essa vontade de se revelar aos outros através da escrita de diários e de outros registros íntimos também existiu no Brasil do século XIX. Neste artigo, consideramos que a insuficiência ou a falta de visibilidade dos diários íntimos no Brasil é, em grande parte, resultado de escolhas efetuadas por nossos antepassados, que muitas vezes optaram por destruir seus registros íntimos para não correrem o risco de ter sua vida devassada pela curiosidade alheia. Ou ainda escolhas de arquivistas e pesquisadores, que por muito tempo se recusaram a conferir a esse tipo de documentação o status de fonte histórica. Mais especificamente, analisamos o diário de José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), importante político e intelectual do Brasil do século XIX, procurando perceber até que ponto, ao comunicar-se para si mesmo, o autor também comunica um pouco do mundo em que vivia ou como se relacionava com esse mundo. Referente ao período de permanência do autor em Londres (1880-1887), o diário registra seu menoscabo pelas mulheres, seus sonhos eróticos homossexuais, seus cuidados com o corpo, seu pavor diante da possibilidade de adoecer, entre outros temas, o que constitui excelente oportunidade para evidenciarmos a legitimidade da sexualidade enquanto objeto de pesquisa e reflexão das ciências sociais. Palavras-chave: Diário íntimo; sexualidade; Couto de Magalhães; intimidade. Recebido em: 24/08/2005. Aprovado em: 14/10/2005. 286 Márcio Couto Henrique PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303, 2005 Em 1933, o pernambucano Gilberto Freyre chamava a atenção dos pesquisadores brasileiros para a necessidade de se atentar para o estudo da “vida doméstica” de nossos antepassados, pois assim “sentimo-nos aos poucos nos completar: é outro meio de procurar-se o ‘tempo perdido’” (FREYRE, 2003, p. 45). Em todo caso, o autor reconhecia que “penetrar na intimidade mesma do passado [...] não é fácil em países como o Brasil [...]”, posto que, segundo ele acreditava: “aqui o confessionário absorveu os segredos pessoais e de família, estancando nos homens, e principalmente nas mulheres, essa vontade de se revelarem aos outros que nos países protestantes provê o estudioso da história íntima de tantos diários, confidências, cartas, memórias, autobiografias, romances autobiográficos. Creio que não há no Brasil um só diário escrito por mulher” (FREYRE, 2003, p. 45). Talvez influenciados por essa sentença freyreana, nos acostumamos a pensar que seria praticamente impossível penetrar na história íntima dos brasileiros de séculos passados através da leitura de seus diários. Entretanto, pesquisas mais recentes têm demonstrado que “essa vontade de se revelarem aos outros” através da escrita de diários e de outros registros íntimos também existiu no Brasil do século XIX. Em publicação recente, Ana Maria Mauad e Mariana Muaze (2004) discutem, por exemplo, o diário da Viscondessa do Arcozelo, escrito na segunda metade do século XIX. Se “só em poucos momentos escreve sobre seus sentimentos”, a viscondessa revela em seu diário informações preciosas sobre o cotidiano do Rio de Janeiro de seu tempo, incluindo temas como as condições de vida da época, a intimidade doméstica, os papéis femininos, a rede de sociabilidade etc. Muito embora discutam um documento que contradiz a tese de Freyre de que “não há no Brasil um só diário escrito por mulher”, as autoras parecem aceitar a sugestão do autor de que a raridade desse tipo de registro íntimo no Brasil é devido ao fato de que “nossas avós, tantas delas analfabetas, mesmo quando baronesas e viscondessas, satisfaziam-se em contar os segredos ao padre confessor e à mucama de estimação” (FREYRE, 2003, p. 45). Assim, enquanto o católico brasileiro podia recorrer ao confessionário para livrar-se da culpa de seus desejos íntimos mais sórdidos, ao protestante inglês ou norteamericano restava o refúgio do papel, o que explicaria a raridade dos diários íntimos na sociedade brasileira e, por outro lado, sua abundância nos EUA e Inglaterra do século XIX. Um Toque de Voyeurismo PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303 , 2005 287 A raridade dos diários íntimos no Brasil oitocentista não pode ser explicada em função da recorrência dos devotos ao confessionário. Basta lembrar que, com a vigência do Padroado, a influência de Roma sobre o Brasil não foi tão significativa até o século XIX, o que fez com que as diretrizes do Concílio de Trento (1545-1563) - entre elas a obrigatoriedade do sacramento da confissão - não fossem aplicadas como a Igreja gostaria. Lembre-se, ainda, que o número de padres era insuficiente para a realização das chamadas desobrigas, como eram chamadas as visitas nas quais os eclesiásticos ministravam os sacramentos aos devotos. Dioceses, prelazias e paróquias ficavam sem padres por muitos anos e poucos bispos se dispunham a realizar as visitas pastorais. Relatando uma visita pastoral de Dom Macedo Costa à localidade de Abaeté, no interior do Pará, em 1876, o periódico A boa nova apresenta dados surpreendentes para o sacramento da confissão: “os padres confessavam desde as quatro horas da madrugada até às 8, e das 4 da tarde até às 10 horas da noite”2 . O mais sensato é pensar que esses números se explicam muito mais pelo longo período sem atendimento espiritual por parte dos padres, do que pela vontade de se revelar ao confessor ou, ainda, pela quantidade de pecados da população de Abaeté. Por outro lado, a ênfase na confissão revela a utilização de um mecanismo através do qual “se incita o sujeito a produzir sobre sua sexualidade um discurso de verdade que é capaz de ter efeitos sobre o próprio sujeito” (FOUCAULT, 1982, p. 264). Pode-se dizer que, assim como Foucault observou na Europa do século XVI, até meados do século XIX a Igreja brasileira “controlou a sexualidade de maneira bastante frouxa: a obrigação do sacramento da confissão anual, com as confissões dos diferentes pecados, garantia que não se tivessem histórias imorais para contar ao padre” (FOUCAULT, 1982, p. 249). Se o refúgio do eu não era exclusividade do padre confessor, outras formas de se desvelar o coração eram praticadas por homens e mulheres do período. Para combater a frouxidão do controle sobre os devotos, a partir da segunda metade do século XIX alguns setores da Igreja católica brasileira deram início a um processo de reforma com implicações diretas sobre a formação dos padres e as práticas religiosas populares. Esse processo, mais conhecido como “romanização”, tinha como característica central a tentativa de aplicar efetivamente no Brasil as resoluções do Concílio de Trento, que, diga-se de passagem, foram reforçadas no Concílio 288 Márcio Couto Henrique PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303, 2005 Vaticano I (1869-1870). Através da aplicação das resoluções tridentinas, a Igreja buscava maior vinculação com o Papa e, por outro lado, uma desvinculação do Padroado Régio e o reforço da hierarquia clerical, o que implicava diminuição da autonomia usufruída pelos leigos em suas práticas religiosas, principalmente em torno das irmandades de santos. Só então se pôde observar no Brasil o aperfeiçoamento de certos mecanismos no interior da instituição eclesiástica que tinham como objetivos conferir aos padres uma melhor formação, para dar conta dos “desvios” dos devotos. A preocupação de D. Macedo Costa com a administração dos sacramentos, por exemplo, evidencia o que Foucault chamou de “técnicas minuciosas de explicitação discursiva da vida cotidiana, de auto-exame, de confissão, de direção de consciência, de relação dirigidos-diretores” (FOUCAULT, 1982, p. 249). Pensadas em seu conjunto, essas técnicas minuciosas fazem parte do que o autor chamou de “dispositivo de sexualidade”3 , incluindo os discursos dos bispos em suas cartas pastorais, mecanismos como a confissão anual obrigatória e organizações leigas dependentes do clero. Não é demais lembrar que a realização dos chamados “círios civis”, em Belém do Pará, em que a procissão do Círio de Nazaré ocorreu sem a participação dos padres, foi motivada por uma questão ligada à moral sexual. Na manhã de 25 de outubro de 1877, os moradores de Belém se depararam com a denúncia feita no periódico Diário de Belém, de que numa das noites do arraial do Círio, foram apresentados quadros com imagens de mulheres nuas. Indignado com tais notícias, D. Macedo Costa decidiu suspender a festa e fechar a igreja. Os devotos reagiram arrombando as portas da igreja e realizando, nos anos de 1878 e 1879, dois “Círios civis”, ou seja, sem a presença do clero católico (ROCQUE, 1981). Medidas regulamentares e moralizantes, como a que foi tomada pelo bispo paraense, também compõem o quadro do “dispositivo de sexualidade”, neste caso configurando uma rede de relações específicas entre clero e devotos. O discurso da autoridade religiosa funcionou como o “elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda” (FOUCAULT, 1982, p. 244): a vontade, por parte da Igreja, de saber/poder sobre a sexualidade, a vontade de poder determinar aos devotos a separação entre sagrado e profano, bem como a separação entre o culto ao corpo vestido da Virgem e o ato de apreciar as mulheres nuas exibidas no Pavilhão de Flora, no centro da atual Praça Santuário da Basílica de Nazaré. Ao ser incitado a falar a verdade de si, Um Toque de Voyeurismo PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303 , 2005 289 o sexo responde. Mas, ao falar, o consentimento de quem o incitou se confunde com a inquisição (FOUCAULT, 2003, p. 75). Preocupada em consolidar um discurso que atingisse as mais tênues e mais individuais das condutas, penetrando e controlando o prazer cotidiano, a Igreja deixava clara sua relação com o poder do qual desejava se desvencilhar. Afinal de contas, sua preocupação com a “moral e os bons costumes” era uma garantia do sono tranqüilo dos burgueses. Isto tem a ver com a multiplicidade de correlações de força e os apoios que tais correlações encontram umas nas outras no jogo que visa a transformar determinado saber num saber/poder sobre os outros. Mas, voltando à relação entre a raridade dos diários íntimos no Brasil oitocentista e a recorrência dos devotos ao confessionário, mais do que concluir pela inexistência desses registros, parece mais salutar considerar as reflexões de Le Goff sobre o tipo de documentação que o passado lega à posteridade: “De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores” (LE GOFF, 1992, p. 535). Podemos pensar então que a insuficiência (ou a falta) de visibilidade dos diários íntimos no Brasil é, em grande parte, resultado dessas escolhas efetuadas por nossos antepassados, que muitas vezes optaram por destruir seus registros íntimos para não correrem o risco de ter sua vida devassada pela curiosidade alheia. Ou ainda escolhas de arquivistas e pesquisadores, que por muito tempo se recusaram a conferir a esse tipo de documentação o status de fonte histórica, de certa forma negando que o documento pudesse ser pensado enquanto um monumento, “resultado do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro - voluntária ou involuntariamente - determinada imagem de si próprias” (LE GOFF, 1992, p. 548)4 . Com a ampliação da noção de fontes históricas a partir da escola dos Analles, os diários íntimos, que antes eram pensados como inexistentes, começam a ser vistos e pensados pelos pesquisadores das ciências sociais no Brasil no seu justo valor. Surgem então análises de diários-monumentos de pessoas importantes da história do país, como o do imperador D. Pedro II, sobre o qual Amaral Lapa afirmou que seria de extrema importância para “nos conduzir à possibilidade de uma linha de equilíbrio, colocando nas justas 290 Márcio Couto Henrique PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303, 2005 dimensões a sua personalidade humana e histórica”, permitindo, ao mesmo tempo, “um juízo mais moderado a respeito dos predicados e mais transigente relativamente às falhas do monarca” (LAPA, 1976, p. 118). No diário de D. Pedro II é possível ver, por exemplo, o desabafo de quem foi “amadurecido pelas responsabilidades e trabalheiras que, prematura e inconstitucionalmente, jogaram-lhe às costas e que, por ocasião do seu aniversário, a 2 de dezembro de 1862, provocariam este registro no diário: Já lá vão 37 anos e que trabalhos tenho tido nos últimos 22! (referia-se aos 22 anos de governo)” (LAPA, 1976, p. 119). Mas também se passa a valorizar o registro íntimo de pessoas comuns, cuja existência até então era desconhecida pelos brasileiros, como é o caso do diário da Viscondessa do Arcozelo, citado mais acima. Em todo caso, deve-se admitir que nem sempre essa peregrinação ao mundo interior (GAY, 1999) se desdobrou num desnudamento dos sentimentos tão intenso quanto o que nos foi revelado através do diário do general Couto de Magalhães (1837-1898). Por esse aspecto, é possível entender a afirmação de Maria Helena P. T. Machado, que encontrou o diário no Arquivo do Estado de São Paulo, de que se trata “de um tipo de documento praticamente inexistente, ou ao menos muito raro, na história do Brasil. Referimo-nos ao diário pessoal e íntimo que, contrariamente à popularidade alcançada pelo gênero na Europa Ocidental e nos EUA do século XIX, sempre escassearam na nossa sociedade” (MAGALHÃES, 1998, p. 20). O mineiro José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898) foi figura destacada do Império brasileiro, tendo ocupado o cargo de presidente das províncias de Goiás (1862-1864), Pará (1864-1866), Mato Grosso (1866-1868) e São Paulo (1888-1889), além de receber o título de general, por conta de sua participação na Guerra do Paraguai (1864-1870). Era sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Sua obra mais importante foi O selvagem (1876), encomendada pelo imperador D. Pedro II para figurar na Exposição Universal de Filadélfia, nos Estados Unidos, por ocasião das comemorações do centenário da independência daquele país. Essa obra colocou o autor entre os iniciadores dos estudos folclóricos no Brasil, por sua preocupação em coligir as crenças, costumes e lendas dos primeiros habitantes do país. Um Toque de Voyeurismo PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303 , 2005 291 Ao contrário do diário da Viscondessa do Arcozelo, que “só em poucos momentos escreve sobre seus sentimentos”, ou mesmo de D. Pedro II, que, segundo Amaral Lapa (1976, p. 128), “sempre foi muito circunspecto no seu procedimento afetivo, não dando ensejo a atoardas ou ditos”, o diário de Couto de Magalhães, referente ao período de permanência do autor em Londres (1880- 1887), está repleto de sua intimidade, registrando em detalhes seu menoscabo pelas mulheres, seus sonhos eróticos homossexuais, seu pavor diante da possibilidade de adoecer etc. Seu diário nos revela um homem que respondeu à incessante demanda de verdade que o Ocidente lançou entre nós e nosso sexo. O diário íntimo de Couto de Magalhães mostra, ao mesmo tempo, um sexo escondido, posto que aparentemente registrado para permanecer na esfera do privado, e um sexo incandescente, posto que ávido de falar sobre si e responder à “petição de saber” que lhe foi imposta há séculos (FOUCAULT, 2003, p. 76). Dessa forma, Couto de Magalhães estaria mais próximo da preocupação com o “eu” que caracterizou numerosos burgueses na Europa e nos Estados Unidos do século XIX. Peter Gay, em seu livro O coração desvelado (1999), mostra com propriedade os sintomas dessa tendência à introspecção, marcada pelo crescente interesse científico pelos sonhos, o conhecimento de si, o uso de drogas, a loucura e as paixões sexuais consideradas desviadas da normalidade etc., temas comuns na literatura e nos meios de comunicação dos dias de hoje, mas que também possuem uma história. E os indícios dessa peregrinação ao mundo interior podem ser encontrados nos inúmeros diários íntimos, confissões escritas, cartas confidenciais, missivas de amor e ruminações religiosas que os homens e mulheres de letras encontraram para impor ao futuro determinada imagem de si próprios. Essa atitude de desvelar o coração fazia parte de um esforço burguês, no sentido de “voltar a fazer do mundo um lugar encantado”. O alvo era a razão iluminista, acusada de - com seu cientificismo frio e sua rebeldia contra a fé - ter banido do mundo a idéia de mistério e de maravilhoso. Era necessário, portanto, libertar a imaginação, recuperar a vida interior do homem e desfazer a secularização do mundo, que haveria de ser reencantado. A imaginação liberta marcaria o triunfo dos românticos sobre a Idade da Razão (GAY, 1999). Em todo caso, deve-se observar uma diferença entre o impulso de introspecção de Couto de Magalhães e o dos autores de diários e autobiografias europeus. Fora do Brasil nota-se que “em muitos países dezenas de escritores e políticos preeminentes, artistas e militares apressavam-se a registrar sua vida 292 Márcio Couto Henrique PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303, 2005 para conhecimento de um público receptivo e, esperavam eles, para uma posteridade agradecida” (GAY, 1999, p. 119), configurando uma verdadeira paixão dos burgueses vitorianos pela auto-revelação. Segundo Peter Gay, as Confissões de Rousseau são uma espécie de paradigma às preocupações desta ordem: “Rousseau parecia obcecado pela publicação de incidentes saborosos, especialmente passagens sexuais sórdidas. Sua iniciação precoce ao masoquismo, que deixou danos permanentes; seu caso pouco convencional com ‘maman’, Madame de Warens; sua visita a uma cortesã veneziana, que o aconselhou a abandonar as mulheres e estudar matemática” (GAY, 1999, p. 123). Com sua atitude abertamente confessional, Rousseau ao mesmo tempo fascinava e perturbava os espíritos de homens e mulheres dedicados à introspecção no século XIX. Ora, se Rousseau tinha como objetivo exibir sua intimidade, mesmo em seus detalhes mais sórdidos, o mesmo não pode ser dito sobre o diário de Couto de Magalhães. A preocupação do letrado brasileiro em codificar os trechos mais comprometedores de seu diário revela isso. Vejam-se, por exemplo, alguns registros feitos pelo autor: “Friday 20th August 1880. [...] Hoje cha Recoana yumuncana o me: arama; inti cha menãn. Ce rak. Inti” (MAGALHÃES, 1998, p. 84). “De 18 para 19 (1881). [...] Passei a noite toda sonhando [...]. Com o Timóteo a cena foi a seguinte: iche aput. Reté ame ahe; ce rac. Sant. Ahé oputá oyum. x. p., e seguimos até um vale úmido de água, e segui depois costa arriba por um morro, um caminho no meio da mata densa, e no sonho o caminho me era muito conhecido, porém não o reconheço depois de acordado; o Timóteo figurava muito mais moço do que ele não é atualmente e depois perdi-me dele, e inti an. Ahé” (MAGALHÃES, 1998, p. 202-203). Na primeira citação, o trecho em nheengatú significa: “deram-me um abraço; não fiz sexo. Meu galho, nada”. E, na segunda: “eu quero muito fazer sexo com ele, meu galho preto endurecido quer estar escondido no ânus p. [...] não falei com ele”5 . Como bem observou Maria Helena P. T. Machado, na introdução ao Diário íntimo, de Couto de Magalhães, mesmo fazendo uso de outra língua para registrar seus sonhos eróticos homossexuais, o autor conferia a certas palavras um significado próprio. Por exemplo, a palavra sakanga ou Um Toque de Voyeurismo PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303 , 2005 293 rakanga (registrada como rak ou rac no diário) significa galho em nheengatú, mas ele a utilizava no sentido metafórico de pênis. A princípio, ele escrevia apenas para si mesmo e o recurso ao nheengatú e a códigos pessoais para registrar seus sonhos eróticos, por exemplo, o distancia de atitudes como a de Rousseau, que queria conquistar a atenção do mundo para suas auto-revelações, mesmo que elas fossem chocantes para a opinião pública. Em função dessa diferença, Amaral Lapa talvez tenha pensado o diário do imperador D. Pedro II “como gênero literário, mas num sentido estético completamente diverso de uma tradição confessional criada por diaristas, como Gide, Amiel, Rousseau, Santo Agostinho e outros mais” (LAPA, 1976, p. 118). Amaral Lapa já refletia sobre a intencionalidade dos registros íntimos, ao afirmar que o diário pode se dirigir a duas direções: na primeira, ele “toma a condição confidenciosa do que foi escrito apenas para o próprio autor, objetivando concorrer para a fixação de sua vivência, de suas ações e reações, tendo em vista um futuro reencontro de lembranças”. Essa parece ser a direção tomada pelo diário de Couto de Magalhães, tendo em vista que uma de suas preocupações centrais era acompanhar os sinais do corpo, atento a qualquer possibilidade de doença, seja ela real ou imaginária. Em outra direção, estão os diários, que “ainda num entretom confidente, registram aquilo que não transpareceu, o que ficou obumbrado para os circunstantes, como uma espécie de testemunho jogado para o futuro, e que, portanto, se dirige para o desconhecido, para o julgamento histórico. Em ambos há, sempre, um desejo de confessar o inconfessável” (LAPA, 1976, p. 116-117). Tanto Foucault quanto Gay nos revelam em suas pesquisas o quanto - a partir do século XVI (na análise de Foucault) - a sexualidade sai de casa, toma conta das livrarias, das confissões, das conversas de botequim. “Em torno do sexo”, cada vez mais “se fala”. Cada vez mais os corpos são mostrados em atitudes indecorosas e os discursos são carregados de palavras indecentes, seja em diários íntimos, como o de Rousseau, seja no de Couto de Magalhães. Os discursos continuam “sujos” para a normalidade. A esse mecanismo de crescente incitação do falar sobre o sexo, Foucault chama de “colocação do sexo em discurso” (FOUCAULT, 2003, p. 16). Os que se mostravam demasiadamente continuavam sendo estigmatizados como anormais e por isso sofriam sanções. Gay lembra que “até o fim da Era Vitoriana, o amor dos homens por outros homens, ou das mulheres por outras mulheres, era visto por muitos como virtualmente 294 Márcio Couto Henrique PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303, 2005 impensável - quase literalmente, o amor que não ousava confessar seu nome” (GAY, 1999, p. 195). Por sua vez, Foucault lembra que foi por volta de 1870 que os psiquiatras começaram a constituir o homossexualismo, termo cunhado em 1869, como objeto de análise médica. Os que eram classificados como homossexuais passaram a ser internados em asilos a fim de serem curados, pois eram percebidos como loucos, doentes do instinto sexual (FOUCAULT, 1982, p. 233-234). Vivendo em Londres entre 1880 e 18876 , certamente Couto de Magalhães estava a par da chamada “psiquiatrização do prazer perverso” (FOUCAULT, 2003, p. 100), que tinha como um de seus objetos privilegiados de saber a figura do adulto perverso, daí talvez a atitude de codificar os trechos de seus sonhos que revelavam sua homossexualidade. Segundo Ângela de Castro Gomes, “cartas, diários íntimos e memórias, entre outros, sempre tiveram autores e leitores” (GOMES, 2004, p. 8). Talvez mais interessante do que perguntar por que alguém escreve diários íntimos, seria perguntar o que leva alguém a querer ler o diário íntimo de outra pessoa? De fato, a princípio, diário é algo que se escreve para ninguém ler, a não ser a própria pessoa que escreve. O diário é uma conversa consigo mesmo, cujos intermediários são o papel e a caneta (ou o tinteiro e a pena, ou o teclado). Por isso, a publicação de diários sempre gera polêmicas, posto que os mesmos são concebidos como documentos pessoais, aos quais o redator faz “confissões” que, supostamente, não faria em público (a menos que sejam confissões à moda rousseauniana). Muitas vezes, certas confissões registradas nas páginas dos diários vão de encontro a certas posições que seus autores assumiram em vida, seja verbalmente, seja nas páginas de suas obras publicadas. Na antropologia, basta lembrar, entre as mais célebres, as polêmicas causadas pela publicação dos diários de campo de Malinowski (1997) e Eduardo Galvão (1996)7 .Como bem lembrou Geertz (1998), a publicação de diários íntimos pode revelar aspectos da vida do autor que levam os mais conservadores a questionarem “o que é que as crianças vão pensar?”. Ao revelar verdades outras, a publicação do diário íntimo profana ídolos, destrói mitos, desestrutura o equilíbrio que sustentava o “clã”. Por outro lado, as outras verdades reveladas pelas práticas de escrita de si são um instrumento precioso para se demonstrar as alterações que marcam a trajetória de um indivíduo ao longo de sua existência. Um Toque de Voyeurismo PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303 , 2005 295 Assim, um exercício interessante passa a ser o confronto entre a imagem pública dos indivíduos, geralmente marcada pela coerência e pela linearidade, com as diversas temporalidades que evidenciam a fragmentação do indivíduo na leitura de um diário íntimo, por exemplo. Se, por um lado, as práticas culturais de produção de si atendem à demanda de uma certa estabilidade e permanência através do tempo (GOMES, 2004), estar atento às múltiplas possibilidades da trajetória de um indivíduo é fundamental para não sermos vítimas do que Pierre Bourdieu (1996) chamou de “ilusão biográfica” - a saber, a crença de que a vida é algo coerente e linear. Ao escrever o artigo intitulado “E o pulso ainda pulsa” (HENRIQUE, 2003), tivemos que nos basear na leitura do diário íntimo do general Couto de Magalhães, publicado em 1998. Assim, pudemos nos voltar para uma faceta um tanto quanto inusitada do autor. As páginas do diário revelaram um homem extremamente excêntrico, o que o colocava por diversas vezes em situaçõeslimite, na medida em que muitos dos registros feitos no diário revelam confissões que conflitam com a imagem que se criou em torno do autor, mesmo em vida. Evidentemente, a discussão em torno do diário íntimo de Couto de Magalhães não tem o mesmo teor da que foi feita a partir da publicação dos diários dos antropólogos citados acima. Afinal, muito embora o autor se aproximasse de um trabalho de campo e tivesse a preocupação de estudar as lendas indígenas “debaixo do mesmo ponto de vista de quem as imaginou” (MAGALHÃES, 1940, p. 163), ele não era propriamente um antropólogo. A antropologia de seu tempo não lhe permitia desvencilhar-se do evolucionismo e etnocentrismo que marcam seu texto, em obras como O selvagem, por exemplo. Por outro lado, o diário de Couto de Magalhães não faz o registro de seu trabalho ou de sua atividade política como presidente da província, mas sim de situações do cotidiano. Em todo caso, sua publicação também gerou polêmica, por razões outras. Na verdade, uma parte do diário já havia sido publicada em 1974, na Coleção Revista de História, referindo-se aos anos de 1887-1890 na vida do autor. Diante do susto de ver devassada a intimidade de um ícone familiar, seus familiares logo trataram de censurar a publicação, expurgando-a de suas passagens mais comprometedoras (MAGALHÃES, 1998, p. 11). Por tudo isso, ler o diário de Couto de Magalhães não deixa de ser, como observou Sarah M. Love para o diário de Frida Kahlo, um “ato de transgressão, um empreendimento com um inevitável toque de voyeurismo” (KAHLO, 1996, p. 25), posto que o diário é a expressão profundamente pessoal 296 Márcio Couto Henrique PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303, 2005 dos sentimentos do autor e, pelo menos aparentemente, não foi escrito para ser publicado. Passamos a duvidar dessa intencionalidade da não-publicação após ler o Diário de um fescenino, de Rubem Fonseca, no qual o autor segue dizendo que, depois de considerar seu diário terminado, talvez o rasgasse ou o deixasse na gaveta para que, depois de sua morte, os outros resolvessem o que fazer com ele. E afirma em seguida: “ou então, pode ser que eu o publique”. Citando Virginia Woolf, o autor diz que o bom diarista “é aquele que escreve para si apenas ou para uma posteridade tão distante que pode sem risco ouvir qualquer segredo e corretamente avaliar o motivo. Para esse público não há necessidade de afetação ou restrição” (FONSECA, 2003, p. 11). Segundo Fonseca (2003, p. 11), “os autores de diários, qualquer que seja a sua natureza, íntima ou anedótica, sempre escrevem para serem lidos, mesmo quando fingem que ele é secreto. O Samuel Pepys, que codificou o seu diário, deixou pistas para ser decifrado”. É como se o autor de diários compartilhasse consigo mesmo aquilo que ele gostaria, na verdade, de discutir ou afirmar publicamente. No caso de Couto de Magalhães, nota-se que ele registrava parte dos trechos comprometedores de sua vida em nheengatú, deixando um largo campo de possibilidades de alguém decifrar ou simplesmente entender o conteúdo, já que grande parte da população brasileira ainda falava essa língua até o final do século XIX. Em certo trecho do diário, Couto de Magalhães afirma: “eu tenho a ambição de fundar alguma coisa que preserve meu nome do esquecimento” (MAGALHÃES, 1998, p. 112). De certo modo, além de suas várias obras publicadas, os registros íntimos feitos nas páginas de seu diário realizaram sua “ambição” de não ser esquecido pela posteridade. Como, então, ler um diário íntimo sem o constrangimento de saber-se transgressor, invasor da privacidade alheia? Em nosso caso, interessa ver até que ponto a conversa do autor consigo mesmo pode ajudar a entender os homens e mulheres de seu tempo, posto que a crônica de sua vida, registrada no diário, está emoldurada pela época em que ele viveu. Ao comunicar-se para si mesmo, Couto de Magalhães também comunica um pouco do mundo em que ele vivia ou como ele se relacionava com este mundo. Segundo o perfil pintado pelos autores que escreveram sobre Couto de Magalhães, ele era um homem de “realizações corajosas e originais”, de vida “que se desdobra em aventuras, em desbravamentos”, em “lutas reais” (MEIRA, 1987, p. 1). Talvez uma das maiores façanhas do autor tenha sido transportar Um Toque de Voyeurismo PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303 , 2005 297 um navio desmontado do rio Paraguai até o Araguaia, pelo meio dos “sertões”, em dezenas de carros de bois, enfrentando índios hostis, animais ferozes e a oposição da imprensa, conforme relatado por Sílvio Meira (1987, p. 10). Clóvis Morais Rego destaca, em sua personalidade, “a invulgar estatura moral e a bravura das atitudes, o equilíbrio das decisões e a lucidez no exame dos assuntos” (Morais Rego apud CRUZ, 1968, p. 74). Para outros, ele ficou lembrado como o general que conseguiu livrar o Brasil da “ameaça” representada pela invasão dos paraguaios no Mato Grosso, por ocasião da Guerra do Paraguai (1864- 1870), onde “[no] meio de tanta perturbação, a têmpera rígida e a calma do General Couto de Magalhães foram sempre inalteráveis”8 . A leitura do diário revela um homem frágil, atemorizado diante da possibilidade de contrair qualquer tipo de doença e das conseqüências disso sobre o bom funcionamento de seu corpo. Veja-se, por exemplo, o registro feito em 21/08/1880: “[...] Notei de manhã que as fezes, além de serem mais abundantes, nadavam melhor; urinas perfeitamente transparentes; língua má antes do jantar, o fastio; contudo, jantei sofrível, e não senti peso no estômago depois do jantar. [...] Continua ainda um pouco de diferença entre o lado direito e o esquerdo, sendo o esquerdo o pior; resumo dos sinais para julgá-lo pior: sensibilidade mórbida da orelha; ponto preto no olho; supurenta pequena da gengiva; dor às vezes debaixo da espádua esquerda; atrofia leve ou comparativa do músculo da mama; nevralgias do lado da cabeça; parece que menor força no braço [...]. Temperatura diversa dessa perna; hemorróidas e pequenas varizes do ânus desse lado; predisposição para furúnculos e tumores também desse lado. [...] Tudo isso espero corrigir e curar, e hei de conseguilo com paciência e perseverança. Sei que é uma coisa difícil pois a medicina está atrasada, e o melhor recurso que eu tenho é a minha própria observação e proceder por tentativa” (MAGALHÃES, 1998, p. 85-86). Para garantir uma vida harmônica, por conta própria o autor revirava tratados de medicina, clássicos gregos e latinos e se submetia a todo tipo de experiências dietéticas e medicamentosas. Curiosamente, apesar de muitas vezes seu diário pintar um quadro de saúde alarmante, o autor não apresentava nenhuma enfermidade que justificasse tal comportamento. Ele próprio se mostrava consciente disso, como no registro feito em 04/09/1880: “passei um dia cheio de cismas, lendo medicina, e uma noite cheia de ansiedades; atribuo isso ao excessivo calor; entre os sintomas imaginários um 298 Márcio Couto Henrique PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303, 2005 havia real, e era o desejo de repuxar o braço esquerdo; afora isso, tudo o mais era imaginação” (MAGALHÃES, 1998, p. 100-101). O registro diário de seus cismas, ansiedades e sintomas imaginários era feito no sentido de facilitar o controle de possíveis doenças ou de situações que lhe causassem desconforto. Para além de suas inquietações com o corpo, escondiam-se preocupações de outra natureza: a sexualidade. Assim, o diário também registra a preocupação com o bom funcionamento dos órgãos sexuais e os sonhos homossexuais do autor, cuidadosamente codificados com a utilização do nheengatú. Neste sentido, a publicação do diário também acrescenta um contraponto à “invulgar estatura moral” apresentada por Morais Rego, ao mostrar o universo onírico de Couto de Magalhães quase que exclusivamente povoado por figuras masculinas. Chama atenção a forma livre e completamente subjetiva com que o autor registra seus sonhos, como que a responder à “colocação do sexo em discurso” de sua época. Imagine-se a situação-limite de ter que viver com uma mulher por onde passava, tendo que esconder seus sonhos e suas fantasias com corpos masculinos, num momento em que os homossexuais começam a ser taxados de loucos e trancafiados em hospícios, passando a ser definidos como “doentes do instinto sexual” (FOUCAULT, 1982, p. 233-234). Vivendo em Londres à época em que escreveu esse diário, Couto de Magalhães tinha uma amante inglesa: Lily Grey. Em todo caso, as referências a ela são sempre vagas e associadas a questões que comprometiam o equilíbrio tão desejado pelo autor. Nas palavras dele, os “ataques histéricos” e o constante “mau-humor” de sua amante inglesa o faziam sentir-se “abatido e com algumas idéias fúnebres”, levando-o a pensar “que continuar a viver junto com ela é uma grande tolice” (MAGALHÃES, 1998, p. 119). Cabe lembrar também que é nesse período que surge a figura do especialista em higiene, infiltrando-se no interior das famílias, interferindo não só sobre o corpo, mas também sobre as emoções e a sexualidade dos cidadãos. A idéia de um corpo saudável estava associada a uma boa conduta moral. O combate à libertinagem, por exemplo, era movido pela idéia de que ela enfraquecia as nações. Por isso o médico higienista Pires de Almeida escrevia, preocupado, que nosso país já “não goza da mesma virilidade” por causa da perda da potência masculina. Dizia ele: Um Toque de Voyeurismo PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303 , 2005 299 “ninguém ignora a reação que exerce o aparelho genital no resto da economia... Quando os cidadãos não gozam, por assim dizer, de toda sua potência, os exércitos não gozam, por sua vez de toda sua bravura [...]” (ALMEIDA, 1906 apud TREVISAN, 2002, p. 172). É interessante o fato de que o general Couto de Magalhães tinha como uma de suas principais preocupações em suas obras publicadas a “virilidade” necessária à recém-formada nação brasileira e, nas páginas de seu diário, é recorrente o registro de suas ereções, bem como o consumo de afrodisíacos ou estimulantes sexuais como a catuaba, amplamente utilizada no século XIX. Por registrar temas que não podiam ser discutidos publicamente, as páginas do diário íntimo permitem a Couto de Magalhães refletir consigo próprio sobre a fronteira do indizível, que se torna possível de ser dito nas páginas do diário, ainda assim com todos os cuidados de codificar trechos comprometedores se ditos ou lidos por outra pessoa. De todo modo, registrando explicitamente sua intimidade ou utilizando-se de códigos para o registro do indizível, o diário de Couto de Magalhães transborda de técnicas de saber e de procedimentos discursivos que Foucault classificou como “regra de imanência”. Ao manifestar estar sempre atento às mínimas manifestações de seu sexo, Couto de Magalhães evidenciava estar preso a formas de sujeição e esquemas de conhecimento que iam muito além de sua individualidade e de sua época, configurando um bom exemplo de “foco local de poder-saber” (FOUCAULT, 2003, p. 94). É importante destacar também que a leitura do diário íntimo do autor não deve ter como objetivo destruir a figura de homem forte, herói da Guerra do Paraguai, substituindo-a pela imagem de um homem frágil, atemorizado por doenças imaginárias e atribulações sexuais. Couto de Magalhães era um homem de seu tempo, e assim devem ser pensadas suas ambigüidades. O que importa é perceber de que maneira o autor procura ordenar, rearranjar e significar o trajeto de sua vida no suporte do texto. Nesse sentido, pode-se pensá-lo como uma espécie de editor de sua própria vida (GOMES, 2004). Num país como o Brasil, em que foi necessário que a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), uma das mais importantes instituições de pesquisa, elaborasse uma moção a favor dos estudos sobre a sexualidade9 , a leitura do diário íntimo do general Couto de Magalhães constitui excelente oportunidade para penetrarmos na história íntima dos brasileiros de séculos passados, evidenciando, ao mesmo tempo, a legitimidade da sexualidade enquanto objeto de pesquisa e reflexão nas ciências sociais. 300 Márcio Couto Henrique PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303, 2005 Referências A BOA NOVA. Belém, 11 de outubro de 1876. ALMEIDA, J. R. P. Homossexualismo: a libertinagem no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Laemmert, 1906. BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. M.; AMADO, J. (Orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. CASTRO, C. O diário de Bernardina. In: GOMES, A. C. (Org.). Escrita de si, escrita da História. 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NOTAS * Doutorando em Ciências Sociais, no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará (PPGCS-UFPA). Endereço eletrônico: marciocouto1@uol.com.br. 1 Este artigo surgiu a partir de dois trabalhos apresentados como requisitos de avaliação final nas disciplinas A História da Sexualidade de Michel Foucault, ministrada pelo prof. Ernani Chaves, e Seminários de Tese, ministrada pela profa. Jane Felipe Beltrão, no PPGCS-UFPA, em 2004. Além dos referidos professores, agradecemos à profa. Laura Moutinho, por suas críticas e sugestões. 2 A boa nova, Belém, 11/10/1876, p. 3. Para uma discussão sobre as visitas pastorais no Pará do século XIX, conferir Henrique (1998). 3 Sobre o “dispositivo de sexualidade”, conferir Foucault (1982 e 2003). 4 Ao analisar o diário de Bernardina, filha de Benjamin Constant, Celso Castro observa que “independentemente dos usos que o diário possa ter para um pesquisador, cabe chamar a atenção para o fato de que os arquivos históricos [...] também possuem uma história. O que se guardou para a posteridade é resultado de acasos, seleções e disputas que devem ser considerados” (CASTRO, 2004, p. 237 - grifos no original). 5 Utilizamos aqui a tradução dos trechos em nheengatú que constam no Diário íntimo organizado por Maria Helena P. T. Machado (1998). Um Toque de Voyeurismo PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(2):285-303 , 2005 303 ABSTRACT A Touch of Voyeurism For years many have doubted whether it was possible to delve into the private history of Brazilians from previous centuries by reading their personal journals, considered nonexistent. However, recent research has demonstrated that the desire to reveal oneself to others by keeping diaries and other personal records also existed in Brazil in the 19th century. In this article we contend that the insufficiency or lack of visibility of diaries in Brazil resulted mainly from choice by our ancestors, who often opted to destroy such personal records to avoid having others shuffle curiously through their private lives. In other cases, archivists and researchers neglected to acknowledge and classify such documents as historical sources. More specifically, we analyze the diary of José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), an important 19th-century Brazilian politician and intellectual, in the attempt to perceive to what extent the author’s communication of himself also conveyed a little of the world in which he viewed himself, or how he related to it. Referring to the time he spent in London (1880-1887), the diary records his belittlement of women, his homoerotic dreams, his preening, his dread at the thought of falling ill, and other topics, thus constituting an excellent opportunity to highlight the legitimacy of sexuality as an object of research and reflection by the Social Sciences. Key words: Personal diary; sexuality; Couto de Magalhães; intimacy